sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Adequar o regime da insolvência e recuperação de empresas às circunstâncias actuais

Intervenção da Ministra da Justiça na abertura do seminário sobre regime da insolvência e recuperação de empresas, em Lisboa

Senhores Palestrantes,
Senhores Dirigentes do IAPMEI e da DGPJ,
Senhores Participantes,

A simplificação do judiciário português é um objectivo primeiro: da organização judiciária à simplificação processual, para efectiva protecção dos direitos, liberdades e garantias.

Assim, também nesse sentido, hoje damos o primeiro passo para se iniciar a discussão pública de um tema tão relevante como o é a necessidade de introduzir aperfeiçoamentos ao regime da insolvência e da recuperação de empresas vigente em Portugal.

Como é sobejamente conhecido por todos, vivemos, na actualidade, uma situação económica difícil, em que todos os dias, muitas famílias e empresas são confrontadas com o facto de não disporem de meios económicos e financeiros que lhes permitam fazer a sua vida e desenvolver a sua actividade de forma regular, ficando tantas vezes impossibilitadas de cumprir os compromissos a que se encontram vinculadas.

São essas famílias e são essas empresas que vêm engrossando, cada vez mais, o número de pessoas declaradas insolventes, isto é, todos aqueles que, reconhecidamente, não conseguem satisfazer as responsabilidades que assumiram perante os respectivos credores.

É também este o tempo em que mais pessoas, sejam elas singulares ou colectivas, sentem as maiores dificuldades em cumprir pontualmente as suas obrigações perante os credores com quem se relacionam, atravessando momentos de verdadeira asfixia financeira.

Tendo presente toda esta realidade, difícil, mas plena de desafios, entendeu o Governo rever o actual regime da insolvência e da recuperação de empresas às circunstâncias que actualmente vivemos, e que exigem que o sistema de Justiça seja célere e eficaz a dar respostas claras e inequívocas aos candentes problemas que se colocam neste domínio.

Está, pois, em causa criar as condições adequadas para permitir a recuperação das empresas ainda aptas a prosseguir a sua actividade, bem como assegurar a efectiva e rápida satisfação dos credores de pessoas declaradas insolventes.

Faço, aliás, notar, que a necessidade de se emprestar um novo fôlego ao quadro regulatório existente nesta matéria resulta também dos compromissos recentemente assumidos por Portugal com as instituições internacionais que possibilitam o refinanciamento do nosso País.

É, portanto, neste contexto que o Governo se propõe tomar um conjunto de medidas de revisão e aperfeiçoamento do actual regime regulador da recuperação de empresas e da insolvência, em dois vectores principais.

Em primeiro lugar, adoptam-se medidas que possibilitem a recuperação de todas as empresas que se encontrem ainda em condições para continuarem no mercado, gerando riqueza e emprego, factores essenciais para que possamos, todos em conjunto, romper, de uma vez por todas, as peias que nos prendem à crise.

Por outro lado, urge agilizar e simplificar o actual regime da insolvência, de molde a incrementar a satisfação rápida e efectiva dos interesses dos credores que se relacionem com todos aqueles que já não estejam em condições de prosseguir a sua vida ou de desenvolver a sua actividade. Para este objectivo não podemos deixar de perder de vista a necessidade de optimizar os recursos disponíveis no sector da Justiça, para melhor servir os utentes do sistema, suprimindo actos inúteis.

A revisão do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas teve na sua base um conjunto de trabalhos preparatórios assente quer na audição dos operadores judiciários, quer na análise dos dados estatísticos recolhidos.

Estes trabalhos, a cargo do Ministério da Justiça, consubstanciaram-se na realização de uma avaliação sucessiva do regime da insolvência e da recuperação de empresas e foi efectuado o levantamento e análise da pendência em atraso na área das insolvências, dando, assim, cumprimento a um dos compromissos assumidos no âmbito do memorando de entendimento.

Assim, no que respeita às medidas que se projecta adoptar em sede de alteração ao regime da insolvência, e, em particular, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, as mesmas traduzem-se no seguinte:

  • Redução do prazo para apresentação à insolvência e incremento da responsabilização do devedor pelo não cumprimento de tal dever – Neste contexto, propõe-se a redução, para metade, do prazo actualmente consignado para este efeito (60 dias) passando este a ser de 30 dias. Procura-se com esta alteração uma maior tutela dos credores, limitando-se tanto quanto possível a existência no mercado de agentes económicos em situação de insolvência.
  • Alteração do regime de abertura do incidente de qualificação da insolvência, fazendo depender a tramitação de tal incidente da existência de indícios que, se provados, serão susceptíveis de conduzir à qualificação da insolvência como culposa - A alteração que se preconiza visa permitir que o incidente de qualificação da insolvência passe a ser tramitado por iniciativa do juiz, só nos casos em que haja indícios de que a situação de insolvência foi criada com culpa do devedor ou de algum dos seus responsáveis. A monitorização do regime tem permitido verificar que a abertura quase que obrigatória do incidente de qualificação da insolvência não se mostra adequada, pois só fará sentido abrir tal incidente quando haja indícios de que houve culpa do agente na geração da situação de insolvência do devedor.
  • Eliminação do carácter de urgência ao incidente de qualificação da insolvência, de molde a possibilitar aos tribunais tramitarem como urgentes os actos que, verdadeiramente, devem merecer tal tratamento – É relativamente consensual que o incidente de qualificação da insolvência não deve ter carácter urgente, visto que não há justificação material para que os actos que dão corpo a tal incidente devam beneficiar de precedência face ao restante serviço do tribunal.
  • Agilização e simplificação do incidente de verificação e graduação de créditos – Propõe-se atribuir carácter facultativo à tentativa de conciliação existente em matéria de verificação e graduação de créditos, fazendo depender a sua realização do prudente juízo que o juiz fizer acerca da sua pertinência em cada caso concreto. Trata-se, por isso, de procurar agilizar a marcha processual do incidente de verificação e graduação de créditos. Por outro lado, preconiza-se uma drástica redução do prazo para que possa haver reclamação ulterior de créditos, passando de um ano para seis meses. Faz-se notar que esta fase é bastante demorada, pelo que se impõe reduzir, para uma duração razoável, o prazo para que tal reclamação possa ser efectivada. Por fim, e com a mesma finalidade, reduz-se de três meses para 30 dias o prazo para que, por inacção negligente do autor, a acção possa extinguir-se.
  • Simplificação do procedimento a observar em matéria de venda antecipada de bens – Atribuem-se ao administrador da insolvência poderes bastantes para que possa, por si, tomar a decisão de vender bens antecipadamente, desde que se encontrem verificadas um conjunto de condições e sem prejuízo da possibilidade de tanto os credores como o juiz reagirem contra eventuais erros por aquele cometidos.
  • Reforço dos poderes de gestão processual concedidos ao juiz da causa em matéria de suspensão da assembleia de credores – Flexibilizam-se as regras de suspensão da assembleia de credores uma vez que se mostra amplamente justificável que a assembleia possa ser suspensa tantas vezes quantas se mostrar necessário para a obtenção de um acordo e que essa suspensão possa perdurar por um prazo mais alargado.
  • Reforço dos poderes do juiz da causa em matéria de satisfação do direito a alimentos a menores que dependam do insolvente – Dando solução a uma iníqua lacuna, permite-se que o juiz possa fixar alimentos a menores que dependam do insolvente, assegurando-se, deste modo, a protecção dos direitos das crianças e a tutela efectiva desses direitos.
  • Reforço da articulação entre o processo de insolvência e a acção executiva – Com a finalidade de retirar todos os efeitos lógicos da inscrição na lista pública de execuções, propõe-se que o Ministério Público, em defesa da legalidade e da regularidade do comércio jurídico, passe a ter o dever expresso de encetar o processo de insolvência de todos aqueles que, não tendo bens penhoráveis, estejam inscritos na referida lista.
  • Simplificação de procedimentos de citação, de notificação dos interessados e de publicidade do processo de insolvência – São simplificados os procedimentos de publicidade utilizados, ponderando-se substituir a publicação dos actos em Diário da República pela publicação no Portal Citius. É ainda simplificado o procedimento de citação a utilizar nas acções intentadas para a verificação ulterior de créditos, substituindo-se a citação edital tradicional por citação edital através de edital electrónico.
  • Consagração da protecção dos credores que intervenham em processo de reestruturação de devedores em situação económica difícil – Consagra-se uma regra nos termos da qual os negócios que sejam realizados entre o devedor e as entidades que lhe aportem capital alheio com vista a propiciar a sua recuperação, no contexto de processo extrajudicial de conciliação, estão a salvo da resolução a favor da massa insolvente. Esta salvaguarda permitirá que potenciais investidores, que pretendam encontrar soluções para devedores em situação económica difícil, não vejam os seus negócios resolvidos em favor da massa insolvente, por efeito de tais devedores entrarem em processo de insolvência.

No entanto, as alterações ao regime da insolvência e da recuperação de empresas não se limitam ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. No Seminário que iniciamos serão tratados e debatidos temas muito relevantes para a recuperação de empresas.

Quando analisamos os percursos efectuados noutros países que, em situação comparável com a portuguesa, procederam recentemente a alterações ao seu regime da insolvência e da recuperação de empresas, verificamos a importância que os procedimentos extrajudiciais têm nas soluções aí encontradas.

De facto, o procedimento extrajudicial de recuperação de devedores, que permite que as partes - o devedor e os credores - possam, ainda antes de recorrer ao processo judicial de insolvência, optar por um acordo extrajudicial que visa a recuperação do devedor e que permite a este continuar a sua actividade económica, é um mecanismo fundamental numa estratégia de recuperação e viabilização de empresas em dificuldade económica.

Isto porque, e quando comparado com o processo judicial de insolvência, são diversas as vantagens do procedimento extrajudicial:

  • É caracterizado por procedimentos mais flexíveis e eficientes que, quando aplicados correctamente, permitem resoluções mais rápidas dos processos, com taxas de recuperação das empresas mais elevadas;
  • Permite que a empresa se mantenha em actividade, sem necessidade de intervenção de terceiros (nomeadamente do administrador da insolvência);
  • Permite que os credores reduzam as suas perdas – importa aqui destacar que os dados estatísticos apontam para uma maior recuperação de créditos nos casos de recuperação extrajudicial de empresas, quando comparado com a insolvência e liquidação do património do devedor;
  • Permite evitar os efeitos sociais e económicos negativos que advêm da liquidação de uma empresa, sendo, por isso, um procedimento benéfico também para trabalhadores, clientes, fornecedores e
    investidores;
  • Permite libertar os tribunais para outros processos, contribuindo assim também para uma maior eficiência e celeridade do sistema judicial.

No entanto, o sucesso deste mecanismo depende também de um conjunto de condições que têm de ser reunidas pelos interessados – desde a efectiva vontade do devedor e dos credores na recuperação da empresa ao compromisso de todos os envolvidos em adoptar comportamentos que não coloquem em causa os direitos e garantias dos demais.

Por esse motivo, o Ministério da Justiça, juntamente com o Ministério da Economia e do Emprego, com o Ministério das Finanças, com o Ministério da Segurança Social e com o Banco de Portugal, procedeu à elaboração de um conjunto de princípios orientadores da recuperação extrajudicial de devedores, a serem seguidos pelos intervenientes nesses procedimentos.

Estes princípios, desenvolvidos tendo em conta as boas práticas e recomendações internacionais, e que serão agora discutidos publicamente, em especial com o sector empresarial, podem e devem ser seguidos em todos os procedimentos extrajudiciais, inclusivamente aqueles que se realizem junto do IAPMEI ou quando esteja em causa a insolvência não de uma empresa, mas de uma pessoa singular.

Outra ferramenta importante no âmbito da política de fomento à recuperação de empresas em situação económica difícil é a instituição de um procedimento judicial de aprovação de planos de reestruturação negociados entre credores e devedor fora dos tribunais.

Este procedimento permitirá que, existindo um acordo para a recuperação do devedor assinado entre o devedor e um conjunto significativo de credores, mas não a sua totalidade, o devedor possa solicitar a homologação do acordo por um juiz, através de um procedimento necessariamente célere, e por essa via garantir a vinculação de todos os credores ao acordo, incluindo daqueles que não o celebraram. Ao permitir esta «extensão», este mecanismo alarga as potencialidades do procedimento extrajudicial, tornando-o mais aliciante para as partes.

Sabemos que nesta matéria, como em muitas outras, não basta apenas mudar a lei mas é necessário também, e sobretudo, alterar as mentalidades. É necessário, por exemplo, que os empresários portugueses compreendam que o sucesso na recuperação de uma empresa passa por agir cedo e agir rápido, e que isso implica que o devedor em dificuldades procure mais cedo do que hoje sucede a ajuda e o acordo dos seus credores para um plano de recuperação.

Acreditamos que, quer o estabelecimento e divulgação dos princípios orientadores, quer a criação do procedimento judicial de aprovação de planos de reestruturação, são factores que contribuirão para alterar essa mentalidade e, consequentemente, para fomentar o número de empresas em Portugal que são alvo de processos de recuperação bem sucedidos, permitindo assim não só manter essas empresas em actividade, mas também salvaguardar postos de trabalho e as relações das mesmas com fornecedores e clientes.

Esperando que as medidas ora apresentadas de forma sucinta possam contribuir para melhorar de forma efectiva o regime da insolvência e da recuperação de empresas, assegurando o rápido saneamento da economia e preservando os agentes económicos aptos a desenvolver a sua actividade de forma regular, estou certa de que o debate que se irá empreender em seguida irá enriquecer as propostas avançadas.

Faço votos para que os trabalhos decorram de forma participativa e para que, em conjunto, possamos encontrar as soluções mais adequadas para debelar os problemas que enfrentamos.
 

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